C G JUNG- O LIVRO VERMELHO- liber primus
Para que névoa e
escuridão conduz tua vereda?
Quando vos dirigis
à vossa alma, ireis sentir falta logo de imediato de sentido ... nada vos
redime do desordenado e insensato, pois esta é a outra metade do mundo.
Sei demais para não ver que ando sobre uma ponte oscilante.
Para onde levas? Perdoa meu medo repleto de saber .Meus pés vacilam em seguir-te. Para que névoa e escuridão
conduz tua vereda? Tenho de aprender também a perder o sentido ? Se tu o exiges , que assim seja . Esta hora
te pertence. O que existe , onde não há
sentido algum ? Só tolice e loucura, assim me parece. Será que existe também um
sentido supremo? Isso é teu sentido , minha alma ? Eu coxeio atrás de ti,
apoiado em muletas da razão. Eu sou um homem e tu andas como Deus. Que tortura
! Preciso voltar a mim, para minhas coisas mínimas. Eu via como pequenas as coisas de minha alma, lamentavelmente
pequenas. Tu me obrigas a vê-las grandes fazê-las grandes . É esta tua
intenção? Eu vou atrás , mas tenho
pavor. Escuta minha dúvida, caso
contrário não posso ir atrás, pois teu sentido é um sentido supremo e
teus passos são passos de um Deus.
Eu entendo, também não devo pensar; também o pensar não deve existir mais? Devo entregar-me
totalmente em tuas mãos – mas quem és tu ? Não confio em ti – nem sequer
confiança tenho – é isto meu amor por ti, minha alegria em ti ? Confio em
qualquer pessoa honrada , mas em ti não
, minha alma ? Tua mão pesa sobre mim , mas eu quero , eu quero . Não
tentei amar pessoas e confiar nelas e
não devo fazê-lo contigo ? Esquece minha dúvida , eu sei ,é deselegante duvidar
de ti. Tu sabes que posso deixar pesadamente o orgulho de mendigo sobre o
próprio pensar. Eu esquecia que também tu pertences a meus amigos e que tens o
primeiro direito à minha confiança . O que dou àqueles não deve pertencer a ti?
Eu reconheço minha injustiça. Eu te desprezava , ao que me parece. Minha
alegria em reencontrá-la era falsa. Reconheço que também a zombaria tinha razão
em mim.
Preciso aprender a amar-te(*). Devo abandonar também a
autoavaliação ? Eu tenho medo . Então a alma falou-me e disse: ¨Este medo depõe contra ti ¨ . É verdade , ele
depõe contra ti . Ele mata a sagrada confiança entre ti e mim.
Que dureza de destino!
Quando vos dirigis à vossa alma , ireis sentir
falta logo de imediato de sentido. Acreditais que estais aprendendo no
sem sentido , no eterno desordenado. Tendes razão ! Nada vos redime do desordenado e insensato ,
pois esta é a outra metade do mundo.
Vosso Deus é uma criança , na medida em que não fordes
infantis. A criança é ordem, sentido ? Ou desordem , capricho ? Desordem e insensatez são as mães
da ordem e do sentido. Ordem e sentido são feitos e não a se fazer.
Vós abris a porta da alma para deixar entrar em vossa ordem
e em vosso sentido as torrentes escuras do caos. Misturai ao ordenado o caos, e gerareis a criança divina, o sentido supremo
além do sentido e do absurdo.
Vós temeis abrir a porta? Também eu tenho medo, pois
esquecemos que o Deus é terrível. Cristo ensinou: Deus é amor. Mas deveis saber que também o amor é terrível.
Eu falava a uma alma amorosa e, quando cheguei mais perto,
fui acometido de pavor e ajuntei um monte de dúvidas e não imaginava que
quisesse com isso proteger-me de minha terrível alma.
Tendes pavor da profundeza ; deve
causar-vos pavor, por sobre isso passa o caminho daquele que vem.
Tu deves resistir à tentação do medo e da dúvida e nisso
reconhecer até o sangue que teu medo é justificado e tua dúvida razoável. Senão
, como seria uma verdadeira tentação e
uma verdadeira vitória ?
Cristo venceu a tentação do demônio, mas não a tentação de
Deus para o bem e o razoável. Cristo está pois submetido à tentação. Isto ainda tendes de aprender: não ficar submetido
a nenhuma tentação , mas fazer tudo voluntariamente; então estareis livres e
além do cristianismo.
Tive de reconhecer que era obrigado a me submeter àquilo que
eu temia , e mais , que devo inclusive
amar aquilo de que tinha pavor . Isto temos de aprender daquele santo que , ao sentir nojo dos doentes da peste , tomava
o pus de suas feridas e notava que tinha um odor de rosas. As ações dos santos
não eram em vão.
Tu és dependente de tua alma em todas as coisas que se
referem à tua salvação e à obtenção da graça. Por isso nenhum sacrifício pode
ser pesado demais para ti. Se tuas virtudes te estorvam na salvação , livra-te delas, pois se tornaram um mal para
ti. Tanto o escravo da virtude quanto o escravo do vício não encontram o
caminho.
Se achas que és o senhor de tua alma , torna-te seu servo
; se fores seu servo , assume o poder sobre ela , pois então ela precisa de
domínio .Que estes sejam teus primeiros passos.
Doravante , durante
seis noites , o espirito da profundeza se calou em mim, pois eu oscilava entre
medo , teimosia e nojo e era totalmente refém de minha paixão. Não podia nem
queria escutar a profundeza. Mas na sétima noite , o espírito da profundeza me
falou:
¨Olha para tua profundeza, reza para tua profundeza , desperta os mortos . ¨
(*)- No Livro Negro 2 , Jung observou aqui : ¨Aqui está
alguém ao meu lado e me cochicha algo de ruim no ouvido: ¨Tu escreves para ser
impresso e ser divulgado às pessoas. Queres provocar sensação através do
incomum. Nietszche, porém , o fez melhor do que tu. Tu imitas Santo Agostinho¨.
A referência é às Confissões de Santo Agostinho (400dC), uma obra devocional
que escreveu quando tinha 45 anos de idade , na qual narra sua conversão ao cristianismo
numa forma autobiográfica ( Confissões. Oxford : Oxford University Press, 1991-
trad Chadwick). As confissões são dirigidas a Deus e recordam os anos de seu
desgarramento de Deus e a maneira de seu
retorno. Em suas obras publicadas , Jung cita várias vezes Agostinho e se
refere frequentemente às Confissões em Transformações e símbolos da libido.
Minha pesquisa artística em arte contemporânea investiga os
processos de transformação da consciência e o papel das artes nesse caminho.
Tomo como fundamentação os trabalhos de C G Jung em especial suas comparações entre religiões e alquimia e
o processo de individuação da psicologia
apresentados no seu livro
vermelho editado após sua morte.
A percepção e genialidade de Jung conseguiram fazer paralelos entre o encontro de Deus e o
si-mesmo, trazendo à contemporaneidade (*) um
clássico do cristianismo
escrito no séc lV : As
Confissões de Santo Agostinho.
Os diálogos de Jung
com a própria alma , marcam o início da era da consciência. A
psicopictografia , como um dos dons espirituais inerentes ao ser humano
, é um dos resultados
do processo de individuação da psicologia .
Taisa Nasser
(*)- A atualidade das
Confissões de Santo Agostinho - O
si-mesmo ( pg 271) :...Depois de
uma breve introdução , Agostinho ascende desde a criação material até o
¨si-mesmo ¨. Distingue o ¨si-mesmo¨do homem , mediante uma análise da memória
em busca da felicidade. Sergio
Ricardo Strefling - doutor em filosofia - prof da FFCH-PUCRS